9 de novembro de 2011

Mas eis que chega a roda viva e carrega a roseira pra lá...

Quando entrei na sala, ainda ao som dos murmúrios dos colegas que encontrei no elevador, e já atrasada uns vinte minutos, vi aquela senhora sentada e logo pensei que fosse mais uma (boa) jornalista que meu professor convidara para conversar com estes aflitos estudantes de jornalismo ávidos por contato com o tal do “mercado”. A convidada contaria detalhes de sua carreira, as reportagens mais difíceis que tivera que fazer, nós a indagaríamos sobre a obrigatoriedade do diploma e ela encerraria a aula com algum conselho para os jovens jornalistas. Ledo engano...

A senhora não era apenas jornalista e não estava ali somente para contar suas peripécias com câmeras e microfones. Quem estava sentada na minha frente era Rosemeire Nogueira Clauset, a Rose Nogueira, mulher aguerrida do ativismo social, jornalista, mãe e sobrevivente das sevícias da ditadura. Eu não sabia nada sobre a história dessa mulher antes daquela aula. Agora, duvido que eu vá esquecer um dia do que ela viveu.

A aula começou, o relógio foi avançando, e tirando as palavras acertadas e as colocações oportunas da jornalista, tudo corria naquela normalidade acachapante. Falávamos basicamente de casos em que a Polícia torturara e executara pessoas, cujos nomes muitas vezes foram omitidos pelos jornalões. Ela nos contou casos a que teve acesso e gente com quem conversou nos anos em que foi presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – o CONDEPE. Quando surgiu a pergunta sobre seu trabalho como editora do Jornal Nacional, Rose contou aos focas o caso da reportagem sobre a invasão da PUC (pelo coronel Erasmo Dias, em 1977), feita por um Luis Fernando Silva Pinto ainda jovem, que ao ser transmitida da redação de São Paulo para a sede da Globo no Rio de Janeiro, levou um “não” da diretora Alice Maria e foi substituída por uma matéria sobre o uso de penas de animais nos desfiles das escolas de samba.

Quando eu pensava que já estava com a aula ganha, é que veio a surpresa. Rose me pegou pelo inesperado e, talvez por isso, tenha me atingido tão em cheio. Não lembro como chegamos ao assunto, mas não consigo esquecer o momento em que descobri estar frente a frente com uma mulher que sobreviveu à tortura do DOI-CODI e à prisão no Tiradentes. A imagem de mulher forte que eu construíra naquela quase uma hora de conversa foi posta em xeque: naquele momento eu tive certeza, ela não era apenas uma mulher forte, ela era uma sobrevivente.

Rose foi aos poucos nos contando como fora mandada para a prisão. Ela e seu marido, Luiz Roberto Clauset, eram jornalistas da Folha da Tarde, militavam na Aliança Libertadora Nacional – um fruto do Partido Comunista Brasileiro – e, portanto, tinham contato direto com figuras como Carlos Marighella, Frei Betto e Frei Tito. No dia 3 de novembro de 1969, a casa deles foi invadida e Rose, quase levada presa, não fosse seu filho recém-nascido, Cacá, que acabara de completar um mês. O investigador da Polícia prometeu voltar no dia seguinte para levá-la e dar um jeito no menino, deixando dois homens para passar a noite na casa e impedir que a jornalista fugisse. Amanheceu, a promessa foi cumprida, Rose teve que deixar Cacá com a faxineira da casa de seus sogros e começou o pesadelo. Seu nome, DOPS.

Lá ela ficou por dois meses na cela do “fundão”, de onde ouviu os agentes comemorando o assassinato de seu grande amigo Carlos Marighella e de onde só saía para ser torturada. Rose era chamada pelos torturadores de “Miss Brasil” que riam e se aproveitavam de seu corpo. Eles diziam “Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas tem um quadril de vaca”. Quem dera eles tivessem apenas rido dela... Eles foram além. Como toda mulher depois do parto, Rose estava sangrando e o leite jorrava de seus peitos, mas os algozes não se importaram com isso, confinaram-na sem qualquer assistência, abusaram de seu corpo e mandaram que um enfermeiro lhe aplicasse uma injeção para fazer seu leite secar. Se esse leite era a sua ligação mais direta com seu rebento, naquele momento tudo parecia estar acabado. Aquela famosa frase escrita em uma parede do DOPS, “Eles estão com meu bebê lá em cima”, foi feita por ela.

Depois, Rose teve prisão preventiva decretada e foi mandada para o Tiradentes, presídio em São Paulo que também teve Monteiro Lobato e Dilma Rousseff confinados entre suas paredes. Para se ter uma ideia de quão ultrajante foi a ditadura dos milicos, estar naquele presídio era, sim, considerado um alívio, uma vez que o preso voltava a ter nome, documento de identidade e poderia ser então encontrado pela sua família. Ela só foi sair de lá em julho de 1970 e mesmo assim, por mais dois anos e meio, precisou prestar contas de onde estava e cumprir regras absurdas, como estar em casa até as 10h da noite e não trabalhar – imposição esta que ela não respeitou porque precisava ajudar sua mãe viúva e criar seu filho Cacá.

Infelizmente, parte da turma já tinha saído da sala e não pode ouvir tudo que a Rose nos contou. Eu, avessa à pieguice e ao choro em público, não aguentei e me rendi à história de vida dessa mulher. Eu tenho uma forma muito particular e íntima de sentir o sofrimento das outras pessoas, não sou mãe e creio que estou longe de sentir isso que elas chamam de “sentimento materno”, mas não consegui sentir outra coisa a não ser nojo, vergonha e raiva daqueles homens que submeteram Rose à mais pura humilhação. Quando tentei me imaginar presa em uma cela, cheirando a sangue, suor e leite azedo – como ela nos descreveu – tive vergonha. Muita vergonha. Uma vergonha não sei se do meu país, não sei se dos ordinários que contribuíram com tanta violência e falta de humanidade.

No fim da aula, quando ela se aproximou, fiquei sem reação, imóvel, mergulhada em um silêncio que me impediu de dizer o quanto eu estava sentida, magoada, envergonhada... Foi um daqueles momentos em que briguei com uma súbita imobilidade e perdi. O máximo que consegui dizer foi “obrigada” e ela não deve ter entendido muito bem o porquê, apenas consentiu com a cabeça. Fiquei devendo um abraço que guardo para a próxima vez em que eu cruzar com essa mulher, e eu tenho certeza que a verei de novo. Rose nos contou seu carma e mostrou sua força assim como quem não quer nada. Rose, de agora em diante, contarei a sua história como alguém que quer apenas uma coisa: que você nunca seja esquecida.


Depoimento da Rose Nogueira para a novela "Amor e Revolução" do SBT:




* O título deste texto é parte da música "Roda Viva", de Chico Buarque, composta para a peça de mesmo nome do ano de 1967.  

6 comentários:

  1. Duas considerações!!!

    - Conheci a Rose Nogueira e a história dela sempre me emociona. Como podem existir pessoas capazes de cometer essas barbaridades???

    - Parabéns Ana por esse texto. Muito bom. Você escreveu de forma brilhante!! Parabéns moça!!!

    Bjos

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  2. Ana, que lindo texto, parabéns!!!
    Ela realmente é extraordinária e passa uma força enorme mesmo "sem querer"...
    Uma das melhores, se não a melhor aula de tutoria que já tivemos.
    Mais uma vez, o texto ficou ótimo :)

    beijinhos,
    Alana

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  3. Puxa vida, não acredito que perdi uma aula tão boa! =/
    Realmente, deve ter sido um relato incrível..

    O texto está maravilhoso Bia, mesmo não indo ao Elias hoje, me imaginei na sala ouvindo ela.. Parabéns!

    Beijão

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  4. Ledo,sevícias, acachapante...

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  5. Deixa eu falar a palavra "SENSACIONAL" pela história de vida dessa mulher.
    Assim que eu li o nome dela já lembrei do depoimento que ela falou em "Amor e Revolução", emocionante. Infelizmente essa parte da história é triste,muito triste.
    Mas,ao mesmo tempo é bem rica! Engraçado isso,né? Uma época tão pesada e ruim carregar também tanta cultura.
    Quando eu entrevistei a Zodja Pereira, a Emília
    do Sitio do Pica Pau da década de 60 ela também me disse coisas pesadas de se entender e com certeza vou levar sempre comigo!
    E falando sobre isso ,eu estou esperando chegar o livro "Liberdade,Volver." ,comprei na segunda,ele é DEMAIIIIIIS,Bea. Foi dificil achar depois de 6 anos que eu li a primeira vez para um trabalho na escola na 8ºsérie ainda. Fala justamente sobre o regime militar e eu até já fiz uma pequena adaptação para virar um filme há 6 anos atrás mesmo, se vc quiser mostro depois!

    Ah! ADOREI o texto e queria ter conhecido essa grande mulher que é a Rose!

    Beijoooooos,Beazita!

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  6. Oi, Ana! Eu entrei no seu site para agradecer aos comentários no Artnativa - é sempre um feedback muito bom, a gente precisa saber se está acertando a mão para o nosso público. Então, obrigado! De toda forma, não foi só pela retribuição de gentilezas que eu acabei ficando por aqui e conhecendo um pouco dos seus próprios textos. Você escreve de uma maneira direta e eficiente e sem incorrer na impessoalidade sem graça, como muitos dos seus colegas por aí. Realmente gostei muito do seu estilo. A sua narrativa deste encontro com a Rose Nogueira é uma porrada e você soube colocar muito bem em palavras.
    Pô, parabéns mesmo!

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